Os conflitos da vizinhança

vizinhos

É muito comum ocorrer conflitos entre vizinhos pelos mais diversos motivos: barulho, odores, trepidações, construções, entre outros.

Por isso, o Código Civil traz a disciplina para tal assunto nos artigos 1277 a 1311, sendo que merece destaque especial o previsto no artigo 1277. Vejamos:

“Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.”

Destarte, o direito de propriedade não é absoluto, pois a utilização do imóvel deve ser “normal”, consideradas a natureza do uso, a localização, entre outros, observada, em especial, a “média” de tolerância dos outros moradores do entorno.

Por isso, situações aparentemente similares terão desfechos diferentes em razão das peculiaridades locais.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo analisou duas situações que envolviam barulhos provocados por vizinhos em condomínios edilícios. Apesar dos julgamentos divergentes, a avaliação realizada pelos magistrados foi baseada nas provas produzidas nos autos e, em especial, na avaliação das peculiaridades dos ambientes observada a “média” de tolerância e percepção de outros moradores do mesmo local. Vejamos:

“DIREITO DE VIZINHANÇA. Ação de obrigação de não fazer c. c. indenização por danos morais. (…) Apartamentos onde residem a autora e a ré Rosângela são vizinhos. Alegação da autora de que o seu sossego vem sendo perturbado por condutas antissociais da ré, em razão de esta última frequentemente promover barulhos excessivos e algazarras em seu apartamento com a porta de entrada aberta. Contestações apresentadas não negaram a ocorrência de frequentes barulhos excessivos e algazarras no apartamento da ré Rosângela, tendo apenas sido argumentado pelas rés que os referidos atos não violariam qualquer Lei ou Decreto. Argumento aduzido pelas rés não merece prosperar, haja vista que os elementos constantes nos autos, especialmente os vídeos que instruem a petição inicial demonstram que os hábitos da ré Rosângela de deixar a porta de entrada de seu apartamento aberta ao receber convidados ou reproduzir música em alto som têm o condão de causar barulhos excessivos que são aptos a perturbar o sossego alheio, conforme as regras de experiência comum. Parte autora realmente tinha direito de reivindicar a adoção de providências destinadas a cessar as interferências prejudiciais ao seu sossego, tais como a instalação de câmera de segurança no corredor existente entre o seu apartamento e o apartamento da ré Rosângela, a fim de apurar eventuais novos usos anormais da propriedade vizinha, bem como a imposição de obrigação de não fazer à ré Rosângela, a fim de que esta se abstenha de promover barulhos excessivos e algazarras em seu apartamento com a porta de entrada aberta, consoante inteligência do artigo 1.277 do Código Civil. Contestações apresentadas não refutaram a alegação de que a reclamação feita junto à síndica teria provocado a ira das rés, a ponto de estas últimas ameaçarem e agredirem verbalmente a autora mediante xingamentos de baixo calão. Alegação presumida verdadeira. Inteligência do artigo 341 do CPC. Ameaças e agressões verbais sofridas pela autora ensejam indenização por danos morais, a fim de compensar a ofensa a direitos da sua personalidade, especialmente a sua integridade psíquica e a sua honra. Indenização por danos morais fixada na sentença recorrida (R$ 600,00) se mostra ínfima ante o teor das ameaças e das agressões verbais sofridas pela autora. Majoração do montante para o patamar de R$ 6.000,00 se mostra adequada para compensar as ofensas à integridade psíquica e à honra da autora, punir as rés e inibir a prática de outros ilícitos. (…)” (TJSP;  Apelação Cível 1063629-90.2021.8.26.0002; Relator (a): Carlos Dias Motta; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 15ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/05/2023; Data de Registro: 26/05/2023)

APELAÇÃO – DIREITO DE VIZINHANÇA – AÇÃO COMINATÓRIA CUMULADA COM INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS – IMPROCEDÊNCIA – RECURSO DAS AUTORAS – Contexto probatório dos autos que não demonstra que vizinha do apartamento de cima ao das autoras produza barulhos excessivos, em desacordo com a normalidade – Uso anormal da propriedade não comprovado, não havendo que se falar, ainda, em desídia do Condomínio – Pequenos transtornos a que todos os que moram em condomínio estão sujeitos – Dano material não configurado – Sentença mantida – Verba honorária majorada na forma do artigo 85, § 11, do Código de Processo Civil – Recurso improvido. (TJSP;  Apelação Cível 1014728-48.2017.8.26.0482; Relator (a): José Augusto Genofre Martins; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Presidente Prudente – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/04/2023; Data de Registro: 25/04/2023)

As lições do Desembargador Francisco Eduardo Loureiro nos comentários ao artigo 1277 do Código Civil[1], são esclarecedoras e representam norte a ser observado na avaliação da aceitabilidade das incomodidades pelos vizinhos:

“Como se extrai do texto do art. 1.277 do CC, o direito de um vizinho reclamar do outro a cessação de certa conduta está subordinado a dois requisitos cumulativos, a saber: a) a existência de interferência prejudicial que atinja certos interesses previstos em lei; b) que essa interferência decorra de uso anormal do imóvel.

No que se refere ao primeiro requisito, o próprio art. 1.277 circunscreve os interesses que podem ser prejudicados pelas interferências: a segurança, a saúde e o sossego. A segurança diz respeito à atividade ou à inatividade que produza um dano efetivo ou crie situação de perigo para o prédio vizinho, incluindo pessoas e bens. Estão nessa categoria todos os trabalhos que produzam ou possam causar o risco concreto de abalos na estrutura, infiltrações, trepidações perigosas, explosões violentas, emanações venenosas, existência de árvores que ameacem tombar e tudo que venha a prejudicar fisicamente o prédio e seus moradores. Um aspecto importante, que reflete na segurança e no sossego, é a conduta inconveniente ou permissiva do vizinho que tolera ou se mostra conivente com o ajuntamento de malfeitores, viciados em entorpecentes, ébrios, ou com qualquer outra situação que possa pôr em risco a incolumidade dos demais moradores dos arredores. Quanto à saúde, garante-se aos vizinhos não só a higidez física, mas também a psíquica. Pode a saúde ser atingida por agentes diversos, físicos, químicos, biológicos ou até mesmo por fatores psicológicos de desassossego ou inquietação. São diversos os casos possíveis: manutenção de água empoçada no quintal ou de animais em condições inadequadas, com a possibilidade de propagar doenças pelo bairro. São ofensas ao sossego as interferências por agentes diversos que causem impressões sensitivas, como o som, a luz, o cheiro, as sensações térmicas e as imagens. Pontes de Miranda afirma que o sossego não é perturbável apenas pelo som. Também o é pela luz, pelo cheiro, por apreensões e choques psíquicos ou outros motivos de inquietação (Tratado das ações. São Paulo, RT, 1971, v. V, p. 279). A diminuição de outras utilidades de um imóvel, ou de vantagens acidentais, como a vista de uma certa paisagem, a regularidade do estilo das fachadas das casas de um certo bairro ou a instalação de uma casa onde se pratica a prostituição, ofende outros interesses e valores, não tutelados pelo direito de vizinhança.

Além disso, não basta saber se a interferência vulnerou os interesses tutelados pelo legislador. O dano decorrente dessa interferência, como afirma a parte final do parágrafo único do art. 1.277, deve ultrapassar “os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”. No dizer de Caio Mário, “se este se contém no limite do tolerável, à vista das circunstâncias do caso, não é de se impor ao proprietário a restrição do uso de seus bens, uma vez que a convivência social, por si mesma, cria a necessidade de cada um sofrer um pouco” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 2003, v. IV, p. 211). Como ensina San Tiago Dantas, “quando o juiz quer saber se os incômodos são ou não excessivos, não é para a pessoa do proprietário que se volta, mas para o proprietário do imóvel como um personagem algébrico, formado pela superposição de quantos se encontram naquela coletividade” (op. cit., p. 278). Não se tutela, portanto, a excessiva sensibilidade de um vizinho nem se levam em conta suas circunstâncias pessoais, mas sim as da média dos moradores da vizinhança.

Essa interferência intolerável deve decorrer do segundo requisito, qual seja, a utilização anormal de um prédio. A grande novidade do CC foi a de estabelecer, no parágrafo único do art. 1.277, parâmetros e balizas para o juiz aferir a normalidade do uso e da interferência entre vizinhos. Na dicção da lei, devem se considerar a natureza da utilização e a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas. O barulho que produz a utilização normal de um imóvel residencial é inferior ao que produz a utilização normal de um imóvel industrial. Em certas porções da cidade, com zoneamento permitido, o ruído que produz a atividade normal de uma casa noturna seria anormal em zona estritamente residencial. Aquele que adquire imóvel em zona rural ou estritamente residencial tem a justa expectativa de ouvir menos ruído que aquele que vive em zona comercial ou industrial. A ideia do legislador, amparado na doutrina de San Tiago Dantas, é a da aplicação do princípio da coexistência dos direitos, cotejando o cerceamento dos direitos do proprietário e os incômodos que a falta desse cerceamento causa ao vizinho. Afere-se a normalidade do uso e a tolerabilidade do incômodo para verificar qual dos direitos deve prevalecer.

Não adotou o legislador o critério da pré-ocupação como determinante para a invocação do direito de vizinhança, de modo que aquele que já se encontra estabelecido em determinado local não tem salvo-conduto para interferir prejudicialmente sobre os imóveis de novos vizinhos que para ali se mudem posteriormente.

Um terceiro critério, determinante para a cessação ou não da atividade do proprietário, é o do interesse público na manutenção da atividade lesiva ao interesse do vizinho, examinado no artigo seguinte.”

Diante do exposto, resta claro que a análise da situação concreta e das possibilidades de êxito e riscos de eventual ingresso com ação judicial em que se discute as incomodidades geradas pela vizinhança deve ser realizada por profissional qualificado.

O escritório Guerra Bortolin Advocacia e Consultoria está atento às tendências jurídicas e qualificado para tutelar os interesses dos seus clientes. Entre em contato conosco pelo WhatsApp (19) 996298567 ou e-mail guerrabortolin@gmail.com.

[1] In Peluso, C. (2022). Código civil comentado: doutrina e jurisprudência (16th ed.). Editora Manole. https://integrada.minhabiblioteca.com.br/books/9786555766134

Compartilhe:
Facebook
Twitter
LinkedIn